A EXPOSIÇÃO
A exposição ARQUIVOS IMPLACÁVEIS MEYER FILHO foi criada a partir da noção de arquipélago-sistema solar, no qual ilhas-planetas são formadas por aspectos pessoais, artísticos, sociais, profissionais, políticos e históricos da vida e da obra de Meyer Filho. Ilhas-planetas estas que remontam à geografia dos lugares em que o artista viveu: a Ilha de Santa Catarina e o planeta Marte. Estes movimentos, da ilha ao cosmos, organizam situações e discursos que questionam as noções de local e universal, de cultura popular e erudita e, por que não, as noções de loucura e processo artístico.
Algumas perguntas simples, mas de respostas complexas, norteiam este arquipélago: Quem foi Meyer Filho?; O que ainda não foi dito sobre Meyer Filho?; Que textos, imagens, histórias e depoimentos ainda não vieram a público?; Que outras coisas poderão ser criadas, articuladas e remontadas a partir destas ilhas? Meyer Filho criou uma linguagem marciana para nós, meros terráqueos, e o que pretendemos com esta exposição é abrir alguns feixes de luz para que sua obra seja vista por lentes estéticas, gelatinosas, multifocais, côncavas e convexas, mas também de contato. Por isso, os títulos das ilhas–planetas foram apropriados de seus escritos, são frases que ele utilizou em diferentes contextos: PLANTANDO DÁ, PESSOAL!; QUEM FALOU QUE OS ANJOS NÃO TÊM SEXO?; EMBAIXADA DE MARTE NO PLANETA TERRA; RESPEITÁVEL PÚBLICO; ILHA DE CASOS E OCASOS RAROS, DE SOL, CHUVA E VENTO SUL; HORA DE UM CERTO CAFÉZINHO e É VERDADE! É TUDO VERDADE!!!!
O implacável, dos arquivos de Meyer Filho, é a maneira como ele foi construído e preservado, a forma como ele decidiu contar sua própria história. Meyer não nos deixa esquecer a extensão de sua obra. Um exemplo disso é quando faz uma colagem de desenhos, com o comentário: “Estes são alguns dos 30.000 (TRINTA MIL) desenhos rápidos e rapidíssimos que fiz no período de 30.4.1941 a 2.7.1971, quando, para ganhar a VIDA, fui um (BOM) bancário….”.
A obra de Meyer Filho tem pelo menos duas fases principais, a que ele produziu antes da aposentadoria, “sem nenhuma falta ao serviço, nenhuma úlcera no estômago e nenhuma promoção por merecimento”, e a que produziu depois, um período de “libertação”. Ser bancário, para Meyer, era uma necessidade, uma maneira de sustentar sua família e a si próprio, uma vez que poucos artistas tinham condições de viver de sua arte, como ele mesmo dizia e repetia: não é porque Victor Meirelles morreu de fome, em um domingo do carnaval carioca, que ele o imitaria, morrendo de fome, em uma quarta-feira de cinzas, do carnaval de Floripa.
Nos atemos, ainda, aos procedimentos de Meyer Filho, ao seu modus operandi, aos aspectos de seus arquivos que nos permitiram chegar até aqui e criar um microcosmo, real e imaginário, ao mesmo tempo, sem desconsiderar o tanto que já foi dito, pensado e escrito. É por isso que esta exposição tem os pés na terra, a cabeça em Marte, e um corpo que atravessa o espaço.
Kamilla Nunes | Curadora Geral
Gabi Bresola | Curadora Adjunta
Aline Natureza | Curadora Assistente
arquipélagos
PLANTANDO DÁ, PESSOAL!
Atrás da casa de Meyer Filho havia um quintal com canteiros onde o artista plantava árvores frutíferas, flores e uma horta, e onde também fincava placas. Ele nutria, com os canteiros, seu interesse por botânica, costumava plantar diferentes espécies e não interferia no desenvolvimento do jardim, pois acreditava que as plantas “se entendiam”. “Plantando dá, pessoal!” é uma das frases pronunciadas por uma cabeça de galo, pintada em um pedaço de madeira e cravada na terra. Nesta ilha, essa placa possui também aspectos metafóricos, que mostram a atuação do artista como alguém que lançou sementes no solo da arte catarinense.
Meyer Filho foi um articulador do seu tempo, e seu desejo de construir coletivamente espaços para a arte contribuiu para a formação de um circuito de arte florianopolitano e catarinense, como o Grupo de Artistas Plásticos de Florianópolis (GAPF), do qual foi cofundador; o Museu de Arte Moderna de Florianópolis (MAMF), atual MASC; o Grupo Sul / Revista Sul e a Revista Litoral; a livraria Anita Garibaldi; o Studio A2; a Galeria Max Stoltz; o Studio de Artes; a Galeria Açu Açu; e a galeria de Zeca D’Acampora.
Entre os documentos que fazem parte desta ilha, alguns foram fundamentais para a construção de uma história da arte nacional, como o convite da primeira exposição do GAPF, de 1958, e o estatuto social do Grupo, de 1975; os primeiros desenhos de Meyer Filho, ainda criança, e os primeiros estudos. Dessa “coleção” de primeiras vezes, é importante apontar a exposição realizada com Hassis, a “1ª Exposição de Motivos Catarinenses”; e a primeira vez que o artista levou um galináceo para um museu, na exposição do NOVE, em comemoração aos 20 anos do GAPF, em 1978.
GAPF
O GAPF (Grupo de Artistas Plásticos de Florianópolis) foi fundado, em 1958, por Aldo Nunes, Dimas Rosa, Ernesto Meyer Filho, Hiedy de Assis Corrêa (Hassis), Hugo Mund Jr., Pedro Paulo Vecchietti, Rodrigo de Haro, Tércio da Gama e Thales Brognoli. Esses artistas logo ficaram conhecidos como Grupo NOVE.
As obras do grupo são fundamentais para entender não somente o contexto da arte moderna em Santa Catarina como o processo de modernização de Florianópolis. Não foi à toa a escolha dos artistas por eles homenageados no 1º e 2º Salão do GAPF: João Evangelista de Andrade Filho, que foi também jurado no segundo salão; Eduardo Dias, cuja obra retratava cenas cotidianas da cidade, e que, para o GAPF, representava um elo entre o local e o global; Martinho de Haro, que, assim como Dias, era considerado um pioneiro da pintura moderna no estado; Franklin Cascaes, que tanto registrou fazeres e hábitos ilhéus quanto contribuiu para a criação de um imaginário fantástico popular.
Mais que prestar homenagem a Dias, Evangelista, Martinho e Cascaes, os artistas do GAPF beberam dessa fonte transformando, com personalidade estética, cenas cotidianas em arte.
EMBAIXADA DE MARTE NO PLANETA TERRA
Meyer Filho contava que foi para Marte pela primeira vez em 1963, quando estava em São Paulo, para sua primeira individual na cidade. A partir daí, foram dezenas de viagens, sempre levado e acompanhado por marcianos.
O ponto de partida desta ilha é o texto Respeitável público, no qual Meyer narra a ida ao Planeta Vermelho para, então, pensar em como Marte o representava e despertava nele a sensação de ilhamento e de angústia, o desejo de reconhecimento e a utopia de um mundo novo. Para Meyer Filho, Marte era um lugar ideal; um espaço de um projeto não somente artístico mas humanitário onde ele era um grande artista, universalmente reconhecido.
A partir da “Embaixada de Marte”, Meyer tecia críticas ao circuito artístico – principalmente à cena catarinense e florianopolitana – e pensava o trinômio local / internacional / universal. Por entender que era um “socialista à sua maneira” e que toda arte é política, discordava da opinião de “ilustres membros do PARTIDÃO e não menos ilustres intelectuais da ESQUERDA FESTIVA”, que o criticavam por não desenhar apenas operários e “gente do povo”.
Formado em Contabilidade, o desenhista e pintor autodidata precisou muitas vezes “PROVAR” para a sociedade e para o próprio meio das artes que era, sim, um artista. Essa tarefa não foi fácil, porque sem diploma em Belas Artes e se recusando a “pintar centenas de medíocres e repetitivos retratos de políticos e autoridades civis, militares e eclesiásticas”, e sem “homenagear” com seus quadros, “as excelentíssimas esposas da burguesia local”, ele precisou se autoproclamar e se autolegitimar como artista para, em seguida, conquistar seu lugar em Marte como pintor “plenipotenciário”, ocasião em que a imprensa e a crítica paulista, mineira e carioca passaram a conhecer e exibir seus trabalhos.
RESPEITÁVEL PÚBLICO
O título desta ilha faz alusão a uma espécie de crônica-manifesto em que Meyer Filho une uma crítica de Nikita Kruschev à arte contemporânea a Orson Welles (em A guerra dos mundos, que, de certo modo, inspirou a “viagem” de Meyer a Marte), passando por julgamentos que recebia a respeito da sua obra e de alguns posicionamentos pessoais.
O texto Respeitável Público nos faz refletir sobre a forma como Meyer Filho se apropriava dos meios de comunicação para levar suas obras e suas críticas ao grande público. Dizia: se a Coca-Cola pode fazer propaganda, por que ele, artista, não poderia?
Meyer tecia suas críticas à sociedade e à própria arte em programas televisivos e de rádio. Em 1990, espalhou outdoors por diversos pontos da cidade, em que fazia uma irônica autocrítica: “ARROMBASTES, FLORIPA! O pintor Meyer Filho só sabe pintar galos!!!!”.
Mas Meyer Filho não era um artista de poucas palavras, nem de meias palavras, e por isso foi convidado a apresentar o Papo de Galo, quadro no Jornal Barriga Verde, em 1983. Com um “linguajar típico, engraçado e insólito”, o artista desejava se comunicar na faixa popular, e sempre iniciava seu quadro cacarejando diante da câmera, por cerca de um minuto e meio. Para ele, dominar as estratégias de meios de comunicação de massa era uma forma de ampliar o alcance de sua arte e de suas ideias.
ILHA DE CASOS E OCASOS RAROS, DE SOL, CHUVA E VENTO SUL
Uma carta de 1941, endereçada a “Mamãe e Papai”, apresenta a primeira impressão de Meyer Filho ao retornar a Florianópolis, após uma temporada em Curitiba, para trabalhar no Banco do Brasil. Florianópolis já era chamada de “Ilha de casos e ocasos raros” e, por conta de alguns escritos do artista, passou a ser, também, “de sol, chuva e vento sul”. As andanças e vivências de Meyer nos espaços da capital catarinense (clubes, praças e bares, principalmente) foram fundamentais para a constituição de sua poética, e para sua legitimação como artista e como cidadão do planeta Marte.
A preocupação do artista em registrar as tradições populares – como a pesca da tainha, o carnaval e o boi-de-mamão – e em mantê-las vivas e vívidas são cuidados percebidos em sua obra, sobretudo, se considerarmos que foram os modos e costumes locais os primeiros temas a aparecerem em seus desenhos, no fim dos anos 1940, momento em que Meyer havia encontrado uma poética própria, um traço que já poderia chamar de seu. As casas e os quintais também foram fundamentais para a construção do repertório poético e antropológico de Meyer Filho.
Entre seus pares, na rua ou na mesa de um bar, na saída do banco ou depois da aposentadoria, Meyer Filho construiu sua imagem de artista, de “louco manso”, de bom burguês, de contador de história e de galo, em conversas sobre política local e internacional, eventos da sociedade, novidades artísticas e alguns cacarejos (algumas vezes, literalmente), sempre regados a um cafezinho ou a uma Brahma bem gelada.
HORA DE UM CERTO CAFÉZINHO
A prática artística de Meyer Filho não se limitava ao seu ateliê. Além das mesas dos bares, onde fazia desenhos, que eram oferecidos a amigos e outros frequentadores, sua casa e a mesa de trabalho no Banco do Brasil também serviam como espaço de criação, investigação e articulação de sua obra. “Quando eu tenho vontade de pintar, eu fico louco”, dizia ele, e não importava onde: ele pintava, desenhava, carimbava e escrevia.
A obra do artista foi construída entre o espaço público e o privado, e o entre aqui significa, também, margem, pois muitas vezes Meyer transformou sua casa em um espaço de produção e de exposição, aberto a todos que passassem por lá.
Além de alguns desenhos e de histórias sobre seus tempos de bancário, esta ilha traz as tapeçarias desenhadas por Meyer e executadas por sua esposa, Ruth, e o estandarte “Galeria Meyer & Filhos”, que ficava pendurado na garagem da casa da rua Altamiro Guimarães, indicando que havia ali uma galeria familiar, uma casa de artistas. Toda hora era “hora de um certo cafézinho”!
Sempre rodeado por pinturas, passarinhos, que ele criava em viveiros e gaiolas, e os mais variados livros de arte, agronomia, botânica e zoologia, Meyer misturou seu mundo fantástico, seu trabalho de bancário e o seu cotidiano familiar.
COMO ACIONAR UM ARQUIVO?
por Sandra Meyer
Este espaço traz composições afetivas que marcaram a vivência de Meyer Filho em família (com a minha mãe, Ruth, e meus irmãos, Helenita e Paulo). Temporalidades e ritmos de presença compartilhados no movimento entre arte e vida. O som do batuque na chegada do boi-de-mamão, o gosto de refrigerante das vernissages, os passeios pelo interior da Ilha de Santa Catarina para desenhar, o sabor da garapa produzida no fundo do quintal, o namoro no banco de ferro da garagem-expositiva, a mãe tecendo tapeçarias, as alfaces frescas recém-colhidas, a casa-atelier sempre cheia de gente, a carinhosa babá, a pose ao lado do coco-galo gigante, as conversas de bar regadas a uma Brahma estupidamente gelada, a coreografia de dança inspirada nele, o jardim florido de galos entre as rosas…
Aqui os arquivos também são implacáveis, na medida em que acionam memórias do corpo, arquivos furiosos, que não cedem ao tempo.
*Este texto, assim como a escolha das obras que compõem esta parede, foi feito por Sandra Meyer, filha do artista e presidenta do Instituto Meyer Filho.
É VERDADE! É TUDO VERDADE!!!!
A frase que dá nome a esta ilha foi repetida muitas vezes, com algumas variações, nas croniquetas de Meyer Filho, por personagens que atestam a veracidade do que foi escrito pelo artista, levando até o(a) mais incrédulo(a) leitor(a) a acreditar em tudo que foi colocado.
Cidadãos comuns sentados na soleira, na rua, na calçada; boi-de-mamão com suas Maricotas, médicos, bois, cavalinhos, bernunças e ursos; casas no fundo dos quintais, casas em primeiro plano, casas na beira do mar, casas com bodes nos quintais, casas com cobertura para canoas e charretes; árvores secas, sombrias, coloridas, por trás dos sóis, ao redor de monumentos, envoltas de pedras; marcianos, personagens cósmicos, surrealistas, fantásticos e siderais…
Nesta ilha, há patas no lugar dos pés; no céu, sóis convivem com luas; das asas de uma ave nascem olhos no lugar de penas; dragões habitam a Terra e convivem com guerreiros siderais; tamanduás servem de apoio para anjos equilibristas; cavalos têm chifres e são montados por diabos; e não há um galo igual ao outro. É, sim, tudo verdade!!!!
*A ilha “É VERDADE! É TUDO VERDADE!!!” contou com o projeto curatorial e cenográfico do coletivo Otropicalista, formado por Marco D. Julio e Marcelo Fialho, em parceria com a equipe curatorial deste projeto.
QUEM FALOU QUE OS ANJOS NÃO TÊM SEXO?
Falos longos e sustentados por pedaços de madeira, falos alados, falos voadores, falos com pernas e esporões, palhaços fálicos, vasos fálicos, galos fálicos, ratos e peixes fálicos. Ao longo dos anos, Meyer Filho desenhou milhares de falos (e outras figuras eróticas) nos bares, no Banco… muitos foram jogados no lixo, outros viraram presentes para alguns amigos, como ele mesmo escreveu: “Quanto aos meus desenhos eróticos, eu os faço desde 1941, quando entrei para o Banco. Mas rasgava todos eles, sob protesto dos meus amigos e para satisfação dos falsos moralistas. E foi somente a partir de 1979 que resolvi dar aos meus desenhos eróticos a mesma importância que sempre dei aos meus galos, às minhas paisagens, meus bois-de-mamão e tudo o que me deu na telha fazer…, e neste ano da graça de 1981, iniciei a primeira série de pinturas eróticas”.
O álbum de eróticos de 1981 está presente nesta ilha na versão original e impressa. Os desenhos que o compõem foram expostos nesse mesmo ano, em Florianópolis, no Estúdio de Artes, de Rosa Corrêa, em uma exposição totalmente composta por obras com esse tema, que fez parte das comemorações dos seus dez anos de aposentadoria, um marco na vida de Meyer Filho.
Segundo Débora Pazetto: “Desde seus primeiros esboços, o artista inventa fusões entre homem e animal, intersecções entre natureza e divindade, derretimento do sagrado sobre o profano, do eterno sobre o efêmero. Acasalem todas as entidades da fauna e da flora, copulem homens, deuses e bichos, cruzem cultura e selvageria, eis como resultado o indelével cosmos de Meyer Filho”.